uma criança com pele de silício e olhos da cor de cristal líquido veio até mim esta noite
e marejando sangue me ofereceu doces rosas de coltan.
da sua mão esquerda pendia uma coleira de par trançado
plugada ao crânio de um ciborgue possesso em forma de Cérbero
que, em binário, latia:
o quê
“paris.py ou o livro dos softwares inúteis” é um diário afetivo. um livro-software. poema-códigos. artesanato de bits. artefatos ciberpáticos. um conjunto de softwares inúteis. programas criados para funcionar em computadores e celulares obsoletos. memórias pessoais escritas para serem executadas em terminais de computadores. experimentos com poesia e linguagem de programação (Python) sobre pessoas, lugares e momentos que marcaram afetivamente minha vida em 2012.
por meio deles, busco me expressar subjetivamente explorando os principais elementos que compõem um software – explorados ora separadamente, ora através de relações:
- seu código fonte – por meio de uma apropriação lírica da semântica e da sintaxe objetivas e unilaterais da linguagem de programação;
- sua lógica de funcionamento – por meio de uma apropriação lírica da lógica de linguagem de programação, como algoritmos e estruturas de dados utilizadas;
- seu resultado pós-execução – por meio do resultado criado a partir da execução final do programa em um computador;
contexto
1 – a angústia: lógica espetacular que supervaloriza a ciência, como detentora da verdade, e a tecnologia, como sua filha prodígio. falso manto quente de números que tenta em vão acalentar um espírito humano que definha. internet. gadgets. iqualquercoisa. redes sociais. até mesmo caminhando no centro da cidade. panfletos. conversas. outdoors. por todos os lados sou bombardeado por novos artefatos tecnológicos, cada vez mais poderosos e onipresentes, criados por uma pequena elite de especialistas que apenas reproduzem a perspectiva dilacerante que reduz o humano a equações e dados estatísticos. até que ponto estamos deixando essa lógica moldar nossas relações?
2 – a alucinação: o casal que se senta a mesa e se esconde atrás da parede de seus smartphones. a visão do concerto por detrás do brilho pálido do lcd de uma câmera digital. náufrago com gps, isolado num mar de gente que caminha ao seu lado na rua. google que apunhala em um golpe seco a discussão sem fim na mesa de bar. pra onde estamos indo? estamos institucionalizando nossa repulsa ao velho, ao agora, ao afeto, ao incerto, ao erro e à exceção – tudo é ruído fétido, que não colabora com a mediana?
#-*- coding: utf-8 -*- ''' UMA CERTA INDECISÃO ''' from random import random def fica(): print "nao fico?" return nao_fica() def nao_fica(): print "fico?" return fica() if __name__ == "__main__": if (random() > 0.5): fica() else: nao_fica()
3 – o grito: na visão utilitarista, um “software inútil”. na minha visão, um recorte sensível daquilo que me faz me sentir vivo. uma provocação, que propõe um apropriar-se tecnologicamente pautado pela adoção de uma nova postura – que aceite os paradoxos, o incerto, as contradições e a insegurança como parte inerente a nós mesmos e que portanto devem ser “refletidas” nas nossas criações – com o objetivo de propiciar o surgimento de artefatos tecnológicos mais humanos (sem nunca ser homem ou mulher). que “choram, cagam, fazem sexo e sentem dor”… o esgoto da rua no lugar de laboratórios esterilizados. calculadora que insiste em dizer que 1 mais 1 são 3. “sangue no silício”.
a exposição
final de outubro de 2012, Paris. casa de amigos, carinhosamente apelidada de maison des solitaires. final de um ciclo e início de um outro ainda desconhecido. os poemas-códigos foram impressos, espalhados pelo local – junto com fotos de Bruno Rodrigues, espelho imagético deste trabalho. enchemos a cara. no fim, poemas foram dados como lembrança a pessoas que marcaram a minha vida e que também serviram de temática para este trabalho. com o espírito despido, chorei. era parte da minha alma que estava ali, nua, exposta pra quem quisesse ver. códigos de carne ao invés de flores de plástico.
fotos daquela noite estão disponíveis no flickr:
andamento
a execução passo a passo dos poemas-códigos pode ser acompanhada nos links abaixo (versões ligeiramente modificadas para rodar via web):
- A_Turma_do_Trabalho.py
- Babilonia.py
- Buarque_e_Babi.py
- Centre_Hospitalier_dOrsay_Secteur_Palaiseau.py
- Domingo_de_manha_(velib).py
- Eu.py
- Hoje_eu_trago_a_besta_dentro_de_mim.py
- Homem_Sem_Face_na_Multidao.py
- Introducao.py
- La_Maison_des_Solitaires.py
- Mademoiselle_Papa.py
- Minha_balofilda_e_eu_no_Gtalk.py
- Omar_is_back.py
- Palavra.py
- Sangue_no_silicio.py
- Software_Convite.py
- Uma_certa_indecisao.py
- Velho_Benzina.py
o projeto, ainda em andamento, pode ser acompanhado-reapropriado pelo github:
quem sabe depois uma versão impressa, encadernada, dessa história toda?
agradecimentos
- a Felipe Ribeiro, Giuliano Obici, Cristiano Rosa, Ricardo Brazileiro e a todos os que participaram da oficina que rolou em 2010 no SESC Belenzinho, pela experiência afetiva que motivou esse trabalho. em especial a Jarbas Jácome e seu sangue no silício;
- a Omar Majdouli, Mael Boutin, Daniel Leite e Stephanie Papa, pelas das fotos da exposição;
- ao velho Benza, pelas fotos sensíveis que refletem o espírito deste trabalho;
- a todos os solitaires, amigos queridos, que receberam de braços abertos toda essa esquizofrenia na sua sala de estar.
- ao pessoal da rede metareciclagem, pela filosofia. isso aqui também é um trabalho metarec;
- a H.D. Mabuse, por uma conversa há muito tempo atrás, que me fez enxergar linguagens de programação sob um outro viés;
dito isso, sumiram no breu criança e criatura
e da aparição só me restou o suor no rosto e uma questão:
amigos,
qual o nome deste livro?
referências & inspirações
[1] “ciberpatia”, texto escrito a muitas mãos (até onde alcança minha memória: Giuliano Obici, Felipe Ribeiro, Jarbas Jácome, Ricardo Brazileiro, Cristiano Rosa, Daniel Dantas…) no verão de 2010, na casa de Felipe Ribeiro – http://filosonias.blogspot.com.br/2011/08/ciberpatia.html
[2] rede metareciclagem – http://rede.metareciclagem.org/
[3] poèmes ALGOL, por Noël Arnaud – http://books.google.com.br/books/about/Po%C3%A8mes_ALGOL.html?id=e59aGwAACAAJ&redir_esc=y
[4] virtual poetry Project – http://ojs.gc.cuny.edu/index.php/VPP/index
[5] code {poems}, por Ishac Bertran – http://code-poems.com/
[6] experimentos de Ricardo Fabbri e Lab Macambira – http://pontaopad.me/desorganismos
[7] microcodes, por Pall Thayer http://pallit.lhi.is/microcodes/
[6] biennale.py, por 0100101110101101.ORG, em colaboração com epidemiC – http://www.0100101110101101.org/home/biennale_py/
[7] conversas de bar – https://jeraman.files.wordpress.com/2013/08/7523c-cn-conversabar.jpg
October 7, 2013 at 8:13 pm